terça-feira, 21 de agosto de 2012

Duche

Quero escrever sobre o banho de palavras absurdas, gorgolejantes e extasiadas que me ocorrem quando a água tépida me define os contornos, nos olhos fechados das quatro paredes de azulejos.

Lavam-me, as gotas mudas desses finais de dia.
Completa-me, a pressão fresca que jorra do céu.
Enquadra-me, a cortina transparente ondulante.

Renasço e recomeço, despida de tudo.

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Uma história na noite

Saio de casa, metade da noite já volvida, num passo acelerado mas silencioso, saltitando longe dos focos de luz dos candeeiros da rua. Peço por tudo para passar despercebida, ser só mais uma sombra entre tantas outras.
Quase me esqueci de ti, quase. Mas a noite nunca me deixa repousar o coração. Chega de mansinho e relembra-me. Estás no ar quente do entardecer, no ténue luar, no ruído abafado da cidade. Dou por mim a precisar de espairecer, mais uma vez. É por isso que saio incógnita e apressada, deixando estupefactos os poucos transeuntes noctívagos, os vagabundos tristes e os boémios das horas mortas.
Soubesses tu onde estou e preocupavas-te. Franzias a testa e cerravas o olhar. Usavas a tua voz pausada e grave, na modalidade especial que usas para os conselhos ponderados e para os sermões.

Provavelmente acenarias negativamente em jeito de desabafo quando eu insistisse no meu devaneio nocturno. Mesmo que te explicasse que só assim me foges da ideia, com o ar frio e ligeiramente húmido da noite a cercar-me toda, provavelmente não entenderias. Porque não há ciência nisso, Sofia, nem lógica, nem fio de novelo que me faça compreender a relação entre o frio da noite e a amnésia selectiva. E eu persistiria, já numa corrida mental e literal pela calçada, os olhos marejados (da emoção ou do frio, pouco interessa) à procura do maravilhoso portal do esquecimento. Talvez na próxima esquina se cale a tua voz na minha cabeça, a tua mão no meu flanco ou os teus lábios no meu ombro.
O que não tem solução, dizem, está solucionado. Tardo em compreender realmente, de alma cheia, esta máxima desapaixonada. Para mim a solução era estares aqui e nenhuma outra me serve, para já. Tudo o resto apenas atenua a saudade, bálsamo fresco na pele dorida.

sábado, 16 de junho de 2012

Dissociação

Mal a porta se entreabre e eu já sei que estás em casa - a luz acesa do quarto, o cheiro a chá quente e a música que toca baixinho preenchem-me os sentidos e denunciam a tua doce e voluptuosa presença.


Chego a demorar mais minutos do que necessário só para não parar de te imaginar. Talvez a água do banho esteja a correr ou a porta da varanda aberta ou o livro que te comprei preguiçosamente pousado na colcha enquanto dormes o sono das sete da tarde.


Esta casa era minha até tu apareceres. Até te apoderares dela com a subtileza de um raio de luar. Tudo é teu, agora, desde a soleira da porta até cada pormenor de cada divisão.


Estou, assim, embriagada de ti quando apareces e me abraças, vindo não sei bem de onde, para concretizar os meus pensamentos. Sinto-te e sinto a derradeira verdade do amor - já nada aqui ou em mim me pertence completamente.

quarta-feira, 13 de junho de 2012

A vida e o instante

A ti que te vi nascer, por condicionantes da profissão e da circunstância, coube-te na roleta sádica do destino sofrer desde o primeiro segundo. 
A primeira e ténue inspiração e o batimento solto do coração doente deram a todos naquela a sala a ilusão de que viverias mais do que umas curtas horas.
Apercebo-me, mais uma vez, de que nada sei sobre o sofrimento e a perda porque a tua mãe, de olhos bem abertos, testemunhou o teu pequenino sopro de vida a desaparecer e nem murmurou uma palavra. Mesmo antes, quando ainda aguardava o momento do teu nascimento, os olhos vidrados e a face inexpressiva perante a probabilidade da tragédia, não lhe ouvi a voz. Ainda assim, tudo naquela sala era ensurdecedor.

E depois, cá fora, a vida continuava. Aliás, muitas novas vidas começavam.
O instante que demoro a escrever isto foi a tua vida inteira. Não tiveste outra oportunidade. Nasceste e acabou tudo, sem segunda hipótese, sem um aconchego ou um beijo.

Inútil ignóbil roleta do destino. 
O mundo segue enquanto duas vidas terminam, uma delas na tortura de te ter sobrevivido.  

Adeus.

sábado, 14 de abril de 2012

Casa de Fumo

Não há prisão como esta casa, sem paredes ou grades, sem guardas, sem câmaras de vigilância.

O perigo é tão grande lá fora que todos nós, prisioneiros de olhos abertos, permanecemos encobertos neste fumo onde os raios de sol só chegam filtrados, as vozes soam a ecos e o futuro é este presente repetido.

Há sempre aqueles dois ou três que tentaram evadir-se (ignorando os apelos desesperados da consciência e da auto-preservação) e que regressaram de alma derretida, cegos da luz brilhante, agora encolhidos no seu frio quadrado de mosaico.

Lembro-me de ser bailarina neste fumo negro, de achar que era parte dele e de o respirar como num último fôlego. Mas o fumo não traz verdade. Traz apenas consolação.



Amanhã é o meu dia de saltar da cortina de vapor preto e expor a minha alma às altas temperaturas.

Se eu derreter por favor relembrem-me como a bailarina da luz.

sábado, 3 de março de 2012

Parque de estacionamento

Fraco, ofegante,
Escorres tu e a memória.
E eu escuto, penosa
A tua triste história.

Nas minhas costas nuas
A tua faca, cravada.
No eco negro das ruas
Não me resta nada.

És o muro baixo e áspero
Do estacionamento
Onde não houve conforto
Para o meu lamento.

Dos gritos ainda presos
No cruel e vil betão
Relembro cada sílaba,
olhos vazios, a cor do chão.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Suficiente

As personagens que eu criei para mim própria atormentam-me.

A amiga, a namorada, a filha, a profissional, a cidadã - todas elas me devoram devagar, mastigam cada pedaço da minha individualidade e engolem-na ruidosamente para o abismo das suas entranhas.

Acreditem, eu já não me lembro de mim. Doem-me os braços de tentar mergulhar profundamente no oceano da felicidade, do sucesso, do amor, da realização pessoal e nem um metro desci. Será possível que alguns de nós vivam anos simplesmente a boiar na água salgada?Os cabelos crespos de sal e a garganta dorida de gritar. Noite e dia. Verão e Inverno.

Lá em baixo os peixinhos nadam nos recifes de coral. Peixinhos que já foram pessoas, que mergulharam e harmoniosamente desceram até ao fundo do mar, construíram uma casa, tiveram filhos, estabeleceram as barbatanas como raízes e agora dizem-me um adeus de bolhinhas e caudas coloridas.

E eu aqui estou, a pele das mãos enrugada, os ossos gelados, a roupa colada ao corpo, prestes a desistir de nadar.
A combater estoicamente a vontade de partir todos os objectos frágeis, romper todos os tecidos, despir-me de todas as roupas e gritar este mundo e o outro pela janela.

Num canto, a frase que repetitivamente me assalta: "o meu melhor não é suficiente, o meu melhor não é suficiente, o meu melhor não é suficiente".